A Buenos Aires da minha Velha Infância

Mais um capítulo das minhas lembranças do tempo de infância e pré-adolescência. Procuro com isso, revelar os negativos guardados na cachola, instigando quem ler a fazer o mesmo. Busco boas recordações de um tempo bom, que marcou de forma indelével a minha trajetória de vida. Desculpem-me pela abordagem numa perspectiva individual, um tanto quanto egoísta, um tanto nostálgica, mas, se são revelações das minhas próprias memórias, não haveria como ser diferente.

A Buenos Aires da minha velha infância

Montes Claros, MG, janeiro de 1963. Rua Buenos Aires, 62, Centro (nas minhas lembranças algo me diz que o nome da rua à época era Bom Jesus, Há que se pesquisar…).  Foi lá a minha primeira residência. Foi lá que passei a minha já velha infância, até os 8 anos de idade.

Morávamos em um barracão, com dois quartos, sala cozinha e DIE (dependência incompleta de empregada, pois era um quartinho minúsculo). Na frente, uma pequena área aberta, com um murinho e um portãozinho de ferro. De propriedade do Sr. Altamiro. Alugamos.

Essas minhas lembranças tem início no período entre 2 e 3 anos de idade. Meus irmãos foram chegando aos poucos: 64, 65, 67 e 1970.

Naquele início da década de 60, a hoje Buenos Aires, bem como as ruas circunvizinhas não tinham calçamento. Brincávamos na terra e com a terra. Nos dias de chuva, era comum construirmos pequenas estruturas de barro, ensaios de barragens, para represamento da enxurrada. Nos dias sem chuva, várias atividades de rua. Somavam-se a nós a meninada da vizinhança, formando quórum para as brincadeiras diversas. Era tudo muito bom!!

Na rua, além da minha casa, havia mais quatro barracões, se não me engano. Lembro que ali moravam Sr. José da Conceição, o seu Lau, a dona Celina. Do outro lado da rua, a imponente residência da dona Conceição Mendonça e do seu Clóvis. Na esquina de cima, com a rua Dr. Veloso, o bar do seu Raul. Na de baixo, com a João Pinheiro, a venda do seu Antônio (eu vivia lá).

Bem próximo da minha casa havia um campinho de futebol, o na época conhecido campinho do Atlas. Hoje imagino um espaço pequeno. Para aquele menino, um verdadeiro estádio. Lá tive os primeiros contatos com o futebol, ainda nas categorias sub 08. A meninada se divertia com as peladas naquele tapete de poeira. Sempre gostei de jogar bola. Há de se ressaltar que sempre jogada por pura insistência e perseverança. Nunca tive a inspiração dos bons de bola e nunca fui o dono da bola.

Próximo também da nossa rua, ficava a famosa “manguinha”. Uma imensa área de mato e barrocas, onde hoje funcionam a Prefeitura Municipal, o Hemominas, a Câmara Municipal, dentre outros vários estabelecimentos. Na “manguinha” saíamos em busca de girinos, explorando as barrocas. Tínhamos que ter cuidado, pois a havia uma renda – falvamos “reca” – de moleques daquelas bandas metidos a valentes e não gostavam muito de invasores em seu território. Eram normais algumas brigas da meninada. Mas logo, na próxima brincadeira ou pelada, a paz era selada.

Aquele foi um tempo de grande aprendizado e inúmeras experiências. Dali fui ao primeiro dia de escola  no Imaculada Conceição, momento deveras traumatizante para quem como eu, nasceu sob o signo da timidez. Pré-primário e primeiro ano no Deolinda Ribeiro. Bons tempos aqueles pois íamos a pé, na maioria das vezes sozinhos até a escola. No incio lá em um daqueles casarões detrás da igreja Matriz. Depois no bairro do Melo, escola novinha em folha e cheio de inovações. Tinha até interfone nas salas para comunicação com a secretaria. Meu primo Jairo, que sempre morou por perto, me acompanhou em diversas dessas idas e vindas ao Grupo Escolar, onde éramos colegas.

Os “para casa” sempre corrigidos com o auxilio de minha mãe, que sempre foi amante dos livros. Ainda muito crianças naquele pequeno barraco, destruímos vários exemplares das revistas da Seleções do Reader’s Digest que ela colecionava com carinho. E da enciclopédia Trópicos então? Rasgamos quase todos os volumes. – Foi ele mãe…

O Joãozinho, filho da dona Celina me ensinou a fazer as primeiras araras (também conhecidas como pipas/papagaios). Ele era um craque nessa arte. Acho que ensinava os meninos para poder vender as manivelas que ele tão bem fabricava. Soltar arara, que saudade…

Algumas vezes meu pai me levava ao campo do Cassimiro ou ao ginásio Darci Ribeiro, para algum jogo mais importante. Meu pai trabalhava no Banco da Bahia, onde trabalhavam também vários jogadores dos times da cidade e do time do próprio banco. Caminhada longa até o Todos os Santos ou a Praça de Esportes. Mas era divertido, mas por vezes sonolento, voltava carregado. 

Nas imediações da minha rua, de repente uma corneta soava alto, seguidas vezes, como uma insistente buzina. Era a vaquinha, veículo de tração animal com um recipiente metálico atrás, onde comprávamos o leite do dia a dia. – Toma aqui o dinheiro. Corre lá menino e compra o leite. Quantas vezes ouvi…

Lembro-me bem de um certo dia em que estavam asfaltando as ruas dali. Num fusquinha verde, um senhor de bigodes e cabelos curtos, penteados para trás, desfilava com ares de fiscal. Logo, uma pequena aglomeração em volta daquele veículo. Pessoas admiradas, afirmavam: – É o prefeito, o prefeito! Era o nosso prefeito da época, o Sr. Antônio Lafetá Rebello, vistoriando as obras.

Foi por ali o meu primeiro contato com a morte de um ser humano. Notícia de que o pai de um vizinho da rua João Pinheiro havia falecido. Sentados à porta de casa, eu, minha irmã e um outro irmão, sabedores do óbito, ouvimos alguém comentar ao olhar um pontinho bem pequeno sob uma grande nuvem branca: – Será que é ele indo pro céu? Naquele momento, ficou a dúvida. Poucos anos depois, percebemos com certa desilusão que urubus voam bem alto…

Na rua João Pinheiro havia e acho que ainda existe, uma loja maçônica. Eram frequentes as brincadeiras noturnas naquela tranquila Montes Claros dos anos 60. Brincávamos próximos a maçonaria, quando, sempre em dias de reunião surgiam temíveis seres em seus ternos pretos. Era uma correria só, por conta das diversas estórias acerca do que ocorria ali dentro da loja. Fértil imaginação infantil!

Meus avós paternos moravam bem perto, na rua Coração de Jesus, e sempre os visitávamos. Tios também moravam próximo e eram quase diários os nossos encontros para as brincadeiras com os primos e primas. Convívio familiar intenso e prazeroso!

Aquele universo lúdico e tranquilo proporcionou a toda aquela garotada uma infância maravilhosa.

No final do ano de 1970, mudamos para o Jardim São Luiz. Casa própria, novos ares.

Dia desses, peguei o carro e depois de anos, voltei à Buenos Aires. O barracão continua lá, um pouco modificado. Trocamos olhares de velhos amigos… Ai tive a sensação de que ele pareceu falar saudoso: – Tá sumido! Cadê sua mãe, seu pai, seus irmãos? Lembra-se dos nossos vizinhos? Sumiram também!! E daquela meninada toda? Eles já não brincam mais aqui em frente… Viu o que construíram no campinho do Atlas e na “manguinha”? Vocês serão sempre muito bem-vindos por aqui, viu!  

Ao olhar da criança interior que habita em mim, sem resposta, pensei: – Brincadeira de mau gosto do Sr. Tempo.

Mas valeu. Se hoje assim escrevo, muito se deve aos bons ares soprados naquela velha infância na rua Bom Jesus, ops! Na rua Buenos Aires e seus arredores e ao aconchego daquele barracão. 

por Anderson Nobre – dez/2019

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