Carta a Um Velho Amigo

Prezado amigo Anderson Nobre,

Não sei se você sabe, eu sou mineiro de nascimento, mais especificamente do norte de Minas. Meus antepassados são da região norte do Brasil, lá pros rios da Amazônia. Foram trazidos para Minas Gerais, município de São Francisco ainda bebês, junto com outros da minha mesma espécie. Com o passar do tempo a nossa família aumentou.

Eu conheci você por volta do ano de 1995. Nós éramos bem mais jovens, lembra?

Naquela ocasião, você chegou pela primeira vez a minha casa acompanhado de alguns parentes e amigos. Lembro-me do seu cunhado Yuri, do seu sogro, o Seu João, e dos seus irmãos Ramon e do Júnior. Era a primeira vez que os via naquela fazenda.

Dessa primeira vez, vocês não chegaram muito perto de nós e pude observá-los de longe. Alguns conhecidos, que dividiam a mesma morada comigo, chegaram mais próximos de onde vocês estavam. Uns poucos acabaram indo embora com vocês. Anderson, você e sua turma ficaram ali por uns três dias.

Você voltou algumas outras vezes, sempre acompanhado. Nessas outras, arrumaram um barco e sempre invadiam o nosso território, remando lentamente, deslizando na superfície do nosso telhado de água. Espreitando. Em silêncio…

Você sempre  trazia novos companheiros. Lembro-me do seu pai, Sr. Vandach, com aquela cabeleira branquinha, meio pesadinho, gente boa. Ele parecia adorar aquele lugar, pois esteve lá mais de uma vez. O Yuri também, contumaz visitante. Exímio na técnica de encantar meus amigos e levá-los com ele, principalmente aqueles das famílias dos Piau e dos Traíra. Tinha um amigo seu, de nome Santo, também muito esperto e que não largava os remos. Parecia conhecer bem lugares como aquele em que eu residia. Fiquei sabendo que ele faleceu ainda bem novo. Pena, gostava dele. Vieram novamente o Seu João, o Ramon e o Júnior. Uma vez um tal de Tusta levou dois sujeitos do meu tamanho. Bem feito, não ia muito com a cara deles. Teve até uma moça, cujo nome não me recordo, mas do rosto me lembro, pois a água ali era bastante “clara”.

Nunca me importei por vocês saírem levando companheiros nossos. Entendia que isso faz parte da sua cultura desde os tempos bíblicos e, no final das contas, sentia que vocês nos apreciavam e até cultivavam um respeito por nós.

A minha casa ficava num mundão de água cristalina. Os nossos jardins submersos eram repletos de plantas, parecendo uns pinheirinhos que, incessantemente, dançavam um dois pra lá, dois pra cá ao ritmo do movimentar da água. Eu gostava de me embrenhar por essa vasta vegetação. Lugar bom pra namorar e para cuidar da ninhada, antes do eclodir dos ovos.

Na vizinhança, muitos pássaros, que já bem cedo ensaiavam melodias diversas, encantando nossos ouvidos. Vez ou outra, passavam feito esquadrilhas, numa formação harmoniosa, bonita de se ver. Aos bandos, as  maritacas faziam um barulho tremendo quando cruzavam o céu.

Numa mata bem próxima, ouvia se o ronco grave dos guaribas. Ariscos por natureza, nunca os vi. Quem não os conhecia até poderia se assustar com aquele sons vindo da mata.

Ao alcançar das vistas, uma casinha, onde moravam trabalhadores da fazenda em que fica a minha lagoa. Anderson, você e sua turma sempre acampavam no terreiro ao lado da casinha, armando suas barracas ou dormindo dentro dos carros. Em poucas ocasiões, vocês ficaram acampados do outro lado da lagoa, debaixo de um enorme pé de Juá.

Lembro d’oces lanchando de manhã, daquele cheiro forte de mortadela e pão francês, acompanhado de um cafezinho ou mesmo de uma coca-cola, refrigerada no isopor com gelo.

Na hora do almoço, sentia o aroma de uma deliciosa farofa. Não era farofa de peixe, com certeza! Vocês comentavam: – Essa dona Nita cozinha pra caramba!! Alguns de vocês, mais animados,  abriam umas latinhas bem geladas que pareciam apreciar por demais. Não sei porque vocês escondiam essas latinhas do Sr. Vandach, que tinha que se contentar com água e coca. Quando o cabeça branca ouvia o tsssss do abrir da latinha, vocês logo vinham com o spray de repelente, de som parecido, Ssssssss. – É o barulho do repelente Seu Vandach, vocês retrucavam, malandramente.

Nas noites, vocês voltavam ao barco, atrás das companheiras piranhas. Pera ai!! Não quero que pensem mal de vocês. Refiro-me, claro, àquela espécie aquática, de dentes afiados e apetite voraz. De barco, pitando cigarros de palha para afugentar os  “muruinhos”, vocês despejavam na água generosos nacos de coração de boi, recheados com anzol. Vem piranha!!!

Vocês costumavam acordar bem cedo. Lembro-me que eu também fazia o mesmo, só pra ver o nascer do Sol. Ah, que belo espetáculo! A grande estrela parecia brilhar mais forte naquele local. Ao nascer, alinhado ainda com o horizonte ele, o Sol, fazia estender sua grande língua luminosa ao longo da superfície, parecendo querer engoli-los naquele
barquinho. Nós, lá embaixo, parávamos para observar essa maravilha. Era tanto brilho de doer os olhos.

Ocês saiam no barco, armados com suas varas, molinetes e carretilhas. O Yuri, esperto, sempre levava umas tradicionais varas de bambu, para maior garantia na captura dos piaus e das traíras.

Ao lançarem suas linhas na água, enfeitadas com peixinhos ou colherinhas nas pontas, vocês deixavam meus companheiros loucos. Os petiscos tinham uma espécie de ganchinhos que sua turma chamava de garateia. Aquilo brilhava feito as laterais prateadas das piabas. Íamos com tudo pra cima deles. Somente quando um dos meus amigos abocanhava aquele tesouro, percebÍamos que era algo artificial. Ai começava um duelo arretado. Os nossos puxando linha água adentro. Os seus recolhendo linha água afora. Puxa, recolhe, puxa, recolhe. Na maioria das vezes vocês venciam. Luta desigual meu amigo!

Uma vez você lançou uma dessas guloseimas artificiais que eu não resisti. Mordi ferozmente. Por sorte, a garateia pegou no canto da minha boca. Pensei: – Aqui não meu veio! Desloquei-me com toda força e velocidade para o fundo. Naquela época eu tinha tanta força que puxei o barco em que você estava. Verdade ou não? Você, ofegante e taquicárdico,  brigava e sonhava com a expectativa do tamanho do troféu. Queria que eu o acompanhasse, né? Recusando o convite, por fim escapei e cê só conseguiu ver  uma ou duas das minhas escamas presas na isca. É, perdi as escamas, mas é melhor que ter virado moqueca, concorda?

Sabe Anderson, quando vocês estavam ali eu até que gostava. A lagoa ficava movimentada. Ficava horas ouvindo o bate-papo de vocês. As vezes falavam muita besteira ou contavam piadas sem graça. Mas na maior parte do tempo pareciam se divertir naquele pedaço de natureza ainda bruta. Cortesia da casa!

Ria de engasgar quando algum dos seus, desastradamente, lançava a linha por cima dos fios da rede elétrica que atravessava a lagoa. Vocês ficavam morrendo de medo de recolhê-la. Vai que dá choque! Os fios, por vezes, ficavam ornamentados com iscas artificiais, penduradas, perdidas pelos inexperientes pescadores.

E quando a linha embolava na carretilha? Você desesperado tentando desembaraçar aquela cabeleira. Juntava a turma lá no fundo para observar aquela cena hilária.

Recordo-me de tudo isso com saudade, pois passado um tempo, vocês não mais voltaram. Outros apareceram. Hoje, habito o paraíso celeste dos bichos da água. Não sei se ainda há parentes meus naquela lagoa. Nem mesmo sei se ainda há lagoa. Você tem notícias de lá? Andaram comentando aqui que a fazenda agora é de uma prima sua. Vá lá rapaz, chama o Yuri, mata a saudade, se é que pescar por lá ainda seja possível.

Meu nome? Não se lembra amigo? Uma dica: é de origem indígena viu.

Sou seu velho amigo, o Tucunaré!


Por Anderson Nobre

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