Catando lembranças…
Escrever tem sido um hobby para mim. Posso dizer que até uma terapia. De certa forma, passei a ficar mais antenado, procurando estar mais atento aos detalhes nas coisas simples que tecem o cotidiano.
Dando fluência ao gosto pela escrita, continuo também a catar lembranças nas gavetas da memória. Assim, a série Catando Lembranças que inicio agora, refere-se à registros pessoais, quase que em pílulas autobiográficas, de momentos ou situações que vivi e que, de alguma forma, deixaram alguma marca mais destacada.
São acontecidos dos quais absorvi algum aprendizado relevante. São momentos compartilhados com parentes, amigos, colegas… Em família, no trabalho, nas horas de lazer e diversão. São memórias de coisas, situações, lugares. São, em geral, bons momentos ou situações curiosas ou engraçadas.
Não me prenderei à sequência cronológica. Os textos seguirão a ordem em que os for encontrando nessas gavetas de lembranças.
Poderiam compor esta série alguns dos textos já publicados, disponíveis no sítio http://www.andersonfnobre.com.br.
Nesse abrir da memória, os escritos terão certamente uma abordagem bem particular, decorrente das minhas vivências e percepções. Se são assim tão particulares, por que então compartilhá-los? Creio que o leitor possa, eventualmente, encontrar algo ou situação parecida também em suas memórias, ou senão, talvez tome gosto pela escrita, se ainda não o tem, e busque trazer à tela ou ao papel suas próprias recordações.
Notas de um jovem fiscal
Idos entre 1982 e 1983. Eu, um jovem entre seus 19 e 20 anos. Havia ingressado como escriturário no Banco do Brasil em dezembro/1981. Ao tomar posse na cidade de Brasília de Minas – MG, logo fui destacado para o PAVAN – Posto Avançado na pequena vizinha cidade de Ubaí – MG.
Os PAVAN eram postos destinados basicamente a atender aos produtores rurais e a efetuar pagamento aos aposentados, em sua maioria também ruralistas.
Então, desde o início da minha carreira no BB, tive contato com as normas e práticas do crédito rural, pelas quais me apaixonei, pois via ali uma bem elaborada política de assistência ao homem do campo. Essa paixão pela área de crédito, principalmente o rural, foi talvez o principal propulsor para o meu crescimento profissional no Banco do Brasil.
Ali, na pequena Ubaí, predominavam os mini e pequenos produtores. Agricultura e pecuária típica de subsistência, apesar dos já presentes esforços dos extensionistas da Emater local. Podiam ser contados nos dedos os que chamávamos de fazendeiros, assim entendidos aqueles de maiores posses. Pelas características da região, não raro eram os eventos de frustração de safras em decorrência da irregularidade das águas.
Fascinado que sou pelas coisas da roça, aquele contato face a face com os produtores me era extremamente gratificante. Há personagens dos quais jamais vou me esquecer. Em geral povo simples, humilde, lutador.
Dia de ir ao Banco era notadamente precedido de um ritual. Vestiam suas melhores já desgastadas roupas. Calçados em velhas botinas de couro ou em chinelos de dedo, já surrados. O tradicional chapéu de palha era adereço obrigatório. Muitos os retiravam ao adentrar a respeitável instituição financeira.
Curioso que no dia de assinatura dos contratos de financiamento, alguns ficavam tão nervosos que tínhamos que conduzi-los à pequena copa nos fundos do Posto Avançado para que conseguissem assinar. Muitos levavam uma colinha com o desenho do nome, que pacientemente reproduziam em movimentos trêmulos, regados ao suor.
Éramos no máximo quatro funcionários. Facilmente, então, passávamos a conhecer toda aquela clientela. Tudo era feito em papel, com auxílio de modernas máquinas de escrever. É, algumas já elétricas!! Computadores, só em filmes de ficção científica.
Em um determinado dia a agência, que ficava em Brasília de Minas, precisou substituir um dos seus fiscais. O fiscal é o funcionário do Banco responsável por vistoriar, in loco, os empreendimentos financiados. Produziam, assim, os clássicos laudos de vistoria. Em alguns casos, os fiscais levavam consigo documentos para coleta de assinatura dos produtores, evitando que os mesmos tivessem que se deslocar à agência ou ao posto.
Acho que pelo meu gosto pelas coisas do meio rural, fui escolhido para um estágio como fiscal. Eu não tinha, e não tenho, nenhuma formação nas ciências agrárias. Mas como ali o que se financiava era bem trivial: milho, feijão, mandioca, cabeças de gado, limpeza de pastagens, construção de cercas, currais…, o trabalho de vistoria era relativamente fácil. Conhecia tais empreendimentos pelos tempos passados na fazenda de um tio na adolescência.
Estágio cumprido, vieram as primeiras missões. A safra 1981/1982 foi prejudicada e tínhamos que colher assinaturas dos produtores nos documentos para prorrogação das suas dívidas. Aluguei um carro com um motorista que conhecia bem a região, juntei a papelada, organizamos os roteiros e saímos pela estrada afora!
Visitávamos diversas pequenas propriedades a cada dia. Todas com suas casinhas singelas, suas pequenas lavouras, uma vaquinha aqui, um bezerrinho ali, um ou outro cavalo acolá. Cachorros e galinhas sempre na recepção. Muitas vezes íamos ao encontro dos mutuários na lida.
Encontrávamos pessoas trabalhadeiras, que labutavam pesado, sob o forte sol desse nosso norte de Minas Gerais. Rostos suados, queimados, marcados como sulcos na terra. Mão calejadas. Olhar de esperança.
Éramos tratados como gente importante. Fiscal do Banco merece respeito e atenção. Eu, ainda muito jovem, de cabelos longos, desgrenhados ombro abaixo, chegando ali representando o Banco do Brasil. Ficava surpreso com a gentileza e cordialidade daquela gente.
Certa feita, chegamos a uma minúscula propriedade por volta das dez horas da manhã para mais uma coleta de assinatura. Horário de almoço na roça! O senhor que nos recebeu era de baixa estatura, andava um pouco curvado por notório defeito na coluna. Ao nos receber, não titubeou e imediatamente nos convidou para o almoço. Eu e o meu companheiro logo aceitamos. Seria enorme desfeita não fazê-lo.
O cardápio, um simples prato de macarrão padre nosso, com um arroz daquele bem quebradinho e ovos caipira fritos. Banquete pro fiscal do banco!! Não usavam corante. Quase tempero nenhum. Então a comida tinha aquele aspecto e sabor hospitalar… Vamos em frente! Comemos bem.
Saímos satisfeitos, com a certeza de que os melhores ingredientes daquele prato de comida foram a generosidade e a atenção a nós dispensada. Temperos
preciosos, socados às batidas dos corações de pessoas do bem, de vida simples, pequenos de posses, grandes de alma. Com certeza, aquele senhor agricultor reservou o melhor do que tinha em casa para nos oferecer. Via-se em seu rosto e no da sua companheira a satisfação em nos servir. Gratos!
Admiro essa gente simples da roça. Enfrentam as dificuldades com vigor, sempre conformados, crentes nas vontades do Criador, na força da terra e no milagre das águas. Renovam suas esperanças a cada ciclo de produção. Gente de fibra. Gente de fé!
Volta e meia os encontrava na cidade. Chegavam, eles com os seus frutos, ambos da terra… Voltavam com a feirinha coletada em uma mercearia de ponta de esquina, por vezes deixando o nome registrado na velha caderneta de registro do fiado das vendas. Troca justa? Nem sempre…
A vida de fiscal não era fácil. Eram quilômetros e mais quilômetros em estradas precárias, enfrentando bancos de areia ou mesmo atoleiros nas preciosas chuvas da região. Quantas vezes dormimos dentro do carro, atolado em lama. Outras vezes, nos valíamos de animais de montaria emprestados por clientes. Voltávamos sempre exaustos, mas de um cansaço gostoso, revigorante!
Certa feita, em busca de um rendimento financeiro maior e ainda sob o ímpeto dos hormônios juvenis, resolvi adquirir um consórcio e comprei um fusca. Era um dos primeiros modelos a álcool, na onda do recém lançado Proálcool. Com dois carburadores, o fuscão bebia mais que o mais inveterado dos viciados. Passei alguns apertos por falta de combustível.
Minha alegria com o fuscão durou pouco mais que 800 quilômetros rodados. Numa manhã de dezembro, sai sozinho para uma vistoria. Com muita pressa, não sei por qual motivo, segui como numa disputa de rali, desafiando a instabilidade daquela estrada em areião. De repente, numa curva deparo-me com um caminhão F-4000 em sentido contrário. Pela velocidade e pela pouca largura da estrada não consegui parar e peguei o caminhão de frente. Disputa desleal!
Lembro-me apenas de sair do carro ainda tonto e com muitas dores e de ser carregado até o caminhão, que sobreviveu ao impacto. Resultado: um pé quebrado, joelho inchado e dores pelo corpo. O fuscão, reduzido a meio fusquinha. Ainda bem que um amigo querido e ex-colega de escola, o Fabinho assumiu o consórcio e levou o fusca. Mais devagar meu fiscal, você ainda tem muito o que rodar…
Continuei nas atividades de fiscalização até que um dia o gerente da agência em Brasília de Minas me designou para uma missão mais complexa. Vistoriar a fazenda de um cliente importante para o banco. Empreendimento de maior complexidade se comparado com aqueles que eu estava acostumado.
Logo tive dificuldades em agendar a vistoria, pois o proprietário estava sempre ocupado. Inexperiente e inseguro fui deixando o tempo passar, sem pedir auxílio aos fiscais mais experientes. O gerente e o banco, esperando pelo serviço. Ciente da minha inação, o gerente me afastou dos serviços de fiscalização, sem antes me passar aquele inesquecível pito.
Aquilo doeu, foi frustrante, vergonhoso, mas extremamente educativo. Percebi o meu erro. Dali em diante nenhum outro superior precisou me passar algum tipo de “corretivo”. Entendi o meu papel naquela empresa e percebi a importância que aquele emprego teria na minha vida. Obrigado meu gerente!
Fiquei no BB por mais 33 anos, mas serão outras as histórias…
Por Anderson Nobre