Captura de Tela 2024-01-03 às 09.24.52

Cinquentenário

Não se engane! Ser feita de tijolos, cimento e madeira não me tornam inerte. Sou viva! As minhas paredes têm porosidades que são permeáveis às angústias e alegrias de todo ser vivo que me habita. Suas dores, frustrações, coragem, esperanças, abraços e xingamentos perpassam a rigidez das minhas colunas, tocam da cumeeira ao meu mais profundo alicerce.

Casas abandonadas não são mal-assombradas; na verdade, elas projetam as sombras dos seus atos e os ecos da complexa rede de sensações que lhes pertencem, e que vocês chamam de “sentimentos”. Uma amálgama que, na minha experiência de décadas, ainda tento compreender. Talvez o mais simples seja chamar a tudo isso de amor. Portanto, quando se põe abaixo uma casa que foi lar de duas, três ou mais gerações de uma família, o dito progresso não traz apenas impactos estéticos, urbanísticos e ambientais ruins. O moderno prédio que ali se constrói soterra o amor. Sim, sepultam o que vocês têm de melhor.

Hoje faço 50 anos, recebendo um merecido trato. Doravante, terei alegres portas e janelas azuis, que remetem às singelas primas que tenho no interior. Aliás, sempre fui muito bem tratada e disso não posso reclamar. Sei que quando fiquei um pouco capenga, foi por absoluta falta de grana. A data festiva fez-me recordar do dia em que recebi os meus primeiros moradores. Ansiosa, tentei mostrar-me segura, ampla e até um pouco chique, com ares de modernidade no meu pomposo estilo colonial. Quando o bonito casal chegou com um pequeno garoto no colo, achei pouco, quase um desperdício para o meu potencial; sem querer me gabar. Por isso, comemorei bastante quando do meio dos poucos móveis e eletrodomésticos, três meninos e uma menina saltaram da carroceria do caminhão de mudanças. Ah, até hoje eu choro quando me lembro da primeira noite; uma bagunça de sabor inesquecível!

Muita coisa mudou ao longo deste meio século, para na essência tudo permanecer igual. Estou muito feliz, porém um pouco apreensiva já́ que no ano que passou senti falta das agitadas e barulhentas reuniões. Há algo que eu deveria saber? Bom, sem querer abusar, eu gostaria de encerrar com um pedido: que no mais breve intervalo possível os encontros voltem a acontecer. Que eu possa me sujar e ser limpa, ter as minhas paredes descascadas, para depois serem pintadas, quem sabe com uma cor ainda mais alegre! Quero seguir assim, sendo gasta e restaurada, pois até anjos cuidam de mim e, sobretudo porque estou viva, e viver é recomeçar sempre que necessário.

Por Vandack A. N. Júnior – 2021

5/5 - (3 votos)