Viagem aos Domínos do Fafá

Janeiro, 1978. Tempo chuvoso, invernado, como se diz aqui no norte de Minas. Eu e o meu primo Jairo fomos convidados pelo amigo Claudinho (que morava ali na Rua João Pinheiro, entre a Porto Alegre e a Correia Machado), para visitarmos a fazenda de sua família. O imóvel ficava nas imediações de Lontra-MG, naquela época, creio, ainda distrito de São João da Ponte.

Aceito o convite, preparamos a tralha; não muita, pois seriam poucos dias de viagem. Acessório fundamental na época eram as espingardas de chumbinho, ideais para a caça de rolinhas e maritacas e outras aves que se atrevessem a se exibirem em nossa mira (pode isso???). Mochilas prontas, armas acondicionadas disfarçadamente em sacos de pano, daqueles de armazenar farinha ou açúcar – tínhamos receio de sermos abordados por algum “Comissário de Menores” -, era pegar o Transnorte rumo à fazenda.

Na antiga rodoviária, ainda aquela próxima à estação de trem, pegamos o ônibus para Januária-MG. Asfalto? Só até a saída de Montes Claros, próximo ali da fábrica de cimento. De resto, terra, ou melhor, lama, muita lama. Chovia…

Algumas horas depois, o Claudinho dá o sinal para o motorista para que parasse, pois desembarcaríamos naquele ponto da estrada. Descemos. Em nosso aguardo um garoto de uns 13 a 14 anos. Sorriso rasgando o rosto negro, denotando prazer em nos receber. Claudinho logo nos apresentou. “- Jairo, Anderson, este é o Fafá. Mora com os pais lá na fazenda e cuidam de tudo por lá”.

O Fafá trazia, além da sua, uma montaria para cada um de nós. Montamos e seguimos. Chovia… Paisagem de cerrado exuberante, ouso dizer que de fazer inveja até ao Guimarães Rosa. Muitos pequizeiros. Muitas árvores ainda floridas de pós primavera. O Fafá conhecida de tudo, cada planta, cada passarinho, cada propriedade vizinha à do Claudinho e ia, de falante sabedoria, nos apresentando aqueles seus domínios.

Chegamos a fazenda. Logo avistamos a casa sede, na   qual nos hospedaríamos e a casa do Fafá, onde já fomos recebidos com uma generosa refeição. A exemplo do filho, os pais do nosso guia nos receberam com notória satisfação. O nome deles? Hum, infelizmente já foram sobrescritos nas páginas da minha memória.

Correram-se os dias… Caçadas às rolinhas e maritacas que levávamos para serem assadas à lenha do velho fogão da casa do Fafá (pode isso???). Passeios a cavalo, caminhadas, muita prosa. Natureza exuberante. Como era bonito o cerrado naqueles saudosos tempos das águas abundantes!

Almoços e jantares deliciosos, regados a simplicidade culinária deste nortão de Minas Gerais, aditivada pelo prazer dos nossos anfitriões em receber os amigos do patrãozinho. Café, biscoito, bolo, milho verde, franguinho caipira… Com certeza ganhamos uns quilinhos.

Banhos?  À base da lata d’agua e de um cheiroso “Gessy Lever“, lembram?. A água vinha quentinha, no latão, direto do fogão a lenha. Reconfortante.

Dormíamos na casa sede. Eu, Jairo e o Claudinho, sempre precedidos da visita do Fafá com seus causos e histórias. Gostava de se gabar das aventuras pela zona boêmia em Lontra. Quando ia indicar a direção geografia de algum itinerário, sempre dizia “- Larga a do toucin e pega na da faca”. Espera que já vou traduzir: a do toucinho era a mão esquerda e a da faca a mão direita. Dizia isso no sentido de virar à esquerda ou à direita. Figuraça o Fafá!

Dormíamos ao lado de um quarto onde guardavam a “safra” de rapaduras, atrativo para um bando de morcegos que volta e meia visitavam o nosso quarto em rasantes apavorantes. Erámos salvos pela tênue luz de um pequeno lampião a gás.

Levantávamo-nos bem cedo a fim de aproveitarmos ao máximo aquela nossa viagem de aventura, sempre sob a agradável e divertida companhia do Fafá e seus causos. Não parava de chover…

Mas, como dizem que tudo que é bom dura pouco, chegou a hora de nos despedirmos da fazenda, do Fafá e do seus pais. O café da manhã daquele dia de partida foi farto e, mais uma vez, carregado de afeto. O céu desabou em água parecendo chorar a nossa partida ou, pelo menos, nos conferindo um disfarce às inevitáveis lágrimas do vou embora.

Animais preparados, sacos plásticos improvisados como capa de chuva e partiu Lontra, onde pegaríamos o ônibus para Montes Claros. De novo, o Fafá nos serviu de guia. O caminho até Lontra era considerável, ainda mais debaixo de um temporal. Chegamos ao pequeno distrito exaustos e ainda cedo em relação ao horário de saída do ônibus. Despedimo-nos mais uma vez do amigo Fafá, com a promessa de retornarmos um dia, quem sabe…

Esperamos a hora da partida do ônibus… Com fome, arriscamos um PF numa vendinha na praça central da localidade. Lembro-me do cardápio: arroz, feijão, chuchu cozido salpicado de pimenta do reino e uma carne de panela. Bati um pratão servido por uma moça de corpo curvilíneo que atiçou fantasias no rapazola naquela manhã de dilúvio, ainda lembrando das aventuras nas alcovas da boêmia, relatadas pelo Fafá nas noites Lontrinas.

Ouvimos a buzina…Era o nosso ônibus chamando para a volta à Montes Claros. O velho coletivo venceu com bravura o lamaçal da estrada. Estávamos em casa. Ainda chovia…

Lembro-me de ter visto o Claudinho algumas outras poucas vezes e sou sempre grato por aqueles inesquecíveis dias na sua fazenda.

Do Fafá e dos seus domínios nunca mais tive notícias. Fica também eterna gratidão.

por Anderson Nobre (nov/2023)

Ps: poucas horas após publicar esse texto, soube da triste notícia do falecimento do amigo Claudinho, ocorrido há alguns anos atrás.

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