“Bocaíuva, cidade sem jeito, onde jegue é relógio e Camelo é prefeito!“ Essa frase, muitas vezes repetida pelo meu avô Vicente, revisitou as galerias das minhas memórias após a minha mãe postar uma foto da antiga casa dos meus avós, naquela cidade.
Tenho algumas lembranças daquela casa… Da então pequena e, de certa forma, pacata cidade de Bocaíuva-MG. Esse álbum em minhas memórias, situa-se entre os idos de 1965 a 1968, creio eu.
São fragmentos de recordações, borradas pelo tempo, interpretadas por uma mente pueril de quem, com pouca idade, se lançava ao merecido e necessário encanto da imaginação. Tudo com suas dimensões extraordinárias… A casa e seus quintais e jardins botânicos, os velhos e surrados móveis, a venda desativada… O “trem de ferro” e seu chacoalhar a nos embalar num sono profundo das “longas” viagens, a estação ferroviária, a velha igreja do Senhor do Bonfim, a fonte luminosa na imensa pracinha, as ruas em terra nua…
Ao ver a foto da casa, logo a reconheci, apesar da maquiagem moderna das antenas parabólicas. Lembrei, de cara, d’eu brincando na calçada da frente com um simples fusquinha de plástico, imitando uma viatura policial, sob os olhos vigilantes da vó Irineia.
E, ainda olhando aquela foto, busquei outras lembranças…
Lembro-me da casa, com seu velho teto de telhas a vista, onde, ao pé direito, o meu avô armava suas ratoeiras a caça de intrusos e incômodos roedores. Da cozinha com o seu fogão de lenha, onde em um dia qualquer o meu pai me ensinou a arte de fazer aviões com folhas de papel. Ah, meus incríveis supersônicos, que atravessavam aquela cozinha com perigosos rasantes no fogão a lenha.
Lembrei-me do amplo quintal com suas imensas jabuticabeiras, onde a minha mãe, tia e tios demonstravam suas habilidades acrobáticas, nos presenteando com doces pérolas negras. Ao fundo, recordo-me dos pés de cana, cujos suculentos talos apreciávamos ali mesmo. Havia também as bananeiras. De ir buscar esterco com o vô Vicente para cuidar das plantas da vó.
Recordo-me dos canários do Tio Tim… Da esperteza do Tio Tião, instalando um balde travestido de chuveiro, alternativa aos banhos de bacia e caneca. Que novidade!!! O banheiro para as necessidades fisiológicas ficava afastado da casa, numa casinha lá no quintal. Só dava pra ir de dia, pois tinha medo de cair naquele buraco e virar cocô…
Emendado ao “nosso” quintal, o quintal da Tia Geralda. Lembro de visitar a casa dela algumas vezes.
Os velhos móveis, o filtro de pedras bem estranho na sala. Acordar com um raio de luz recheado de particulas de pó e fumaça, furando o telhado para nos despertar, já ao delicioso cheirinho do café da vó. E os almoços de domingo com toda a família reunida. O delicioso frango caipira tinha presença garantida! O “ganhador” era objeto de disputa entre mim e a minha irmã.
Ir até a venda desativada, escura, poeirenta. O velho balcão, a velha balança… Ouvir o som da sinfonia dos passos batucados sobre aquele chão de tábuas corridas. Toc, toc, toc, toc…
Explorar aquele quintal floresta, aventura digna dos mais corajosos bandeirantes e conquistadores. Ir até o chiqueiro ao aroma podre da lama preta e encharcada e ao ronco dos porcos, era a certeza de voltar com pelo menos um bichinho de pé, que a minha mãe, se deliciando, retirava com muita destreza.
Pensando aqui, recebi a visita da minha neta por quase um mês… E percebo que sou um afortunado, pois creio que a minha neta não terá a oportunidade de viver o que eu vivi… Nem os meus filhos tiveram tal sorte. No máximo poderão assistir a um vídeo no Youtube ou no Instagram ou ainda, simular um ambiente assim em algum desses ambientes ou jogos virtuais.
Ali sim, em Bocaíuva, vivi no meu “Sitio do Pica-Pau Amarelo” – substituindo o pica-pau pelos amarelos canários do Tim, é claro. Uma experiência lúdica, maravilhosa que deveria ser legada a toda criança.
Ao ver a velha casa com suas portas e janelas azuis, me vieram os cheiros, os sons, as vozes, as imagens daquelas férias de final da década de 60.
É Bocaíuva, cidade sem jeito… Bateu saudade de um tempo que já vai longe, de uma casa mágica de janelinhas azuis e de suas pessoas amadas…Tudo perfeito!!!
por Anderson Nobre – jan/2021