Era uma típica manhã de verão nas bandas do norte das Minas Gerais. Era mais um dia de férias na fazenda do tio Itamar. O dia prometia mais uma repetição da nossa prazerosa rotina rural… Um belo café da manhã, incursões pelo curral e arredores, talvez uma voltinha a cavalo, uma espiada no riacho das águas argilosas.
Mas não que de repente, fomos surpreendidos pela visita de um mensageiro, que um tanto quanto ofegante, chamou pelo tio. Veio com um recado de urgência: “- Seu Guido pediu pro senhor ir lá na fazenda dele, pois o garrote foi atropelado”. A meninada compartilhou ouvidos ao mensageiro e logo todos, curiosos da idade, queriam acompanhar o tio ao local do ocorrido.
Ouviu-se um turbilhão de “- Tio, podemos ir juntos? Leva a gente…” Em sequência a C10 já carregada com a turma rumou em direção à fazendo do Seu Guido.
Confesso que a memória falhou agora, também lá se vão quase meio século da data do fatídico acidente, e eu não sei se passamos antes por Engenheiro Navarro. Só sei que alguns quilômetros após pegarmos a BR-135, sentido Engenheiro Dolabela, avistamos a cena do atropelamento. De um lado, invadindo para além do acostamento, um caminhão Mercedes Benz, cabine cor azul, com a frente danificada em denúncia do fato. Do outro, o pobre e imenso zebuíno, caído, mas sem danos aparentes.
“– Mas será que o boi tá só desmaiado?”, foi a aposta de parte daqueles inocentes e esperançosos meninos. Qual nada! O garrote havia sucumbido a carga pesada do “Mercedão” em veloz banguela e partido desta para a melhor.
Diante do fato, os adultos entraram em uma rápida convenção para deliberação dos próximos passos. Em sequência, algumas pessoas começaram uma intensa movimentação, como se preparando para o ritual. Facas em seguidas lambidas em pedras de amolar. Pedaços de madeira seca recolhidos do mato e postos em formação para uma fogueira. Saco de sal retirado de um dos carros. Pudemos reconhecer o Nem, popular açougueiro em Engenheiro Navarro assumindo o comando das ações.
A meninada incrédula, já antevendo a cena do desmanche do garrote, se aproximou. Alguém acendeu o fogo. Outros começaram a dissecar o pobre animal. Aqueles que não queriam visitar os detalhes anatômicos do bovino se afastaram.
Sei que minutos depois, numa velha panela posta sobre o fogo, ardia um pouco de óleo e cebola. Caramba! Alguém levou cebola! Do garrote, então, foi retirado o fígado, ainda vibrando em vermelho sangue. Alguns preparos iniciais e logo o órgão foi levado à panela no acostamento cozinha. Fumaça sobe. Um cheirinho bom invade aquele pedaço da 135, contrastando com a dramaticidade da cena do bicho entreaberto. Bocas salivantes, entretanto…
Na mesma velha panela, o açougueiro Nem faz a mistura do fígado a uma farinha grossa. Em seguida, ele pega o recipiente e começa a ofertar a iguaria recém preparada para todos ali presentes. Nós, meninos, meio ressabiados, esticamos as mãos – não tão limpas – à espera da colherada de fígado com farinha. Mãos carregadas, faz-se o certeiro arremesso à boca…
Hum!!!! Já não me lembro de muito mais de outros detalhes daquele inusitado momento. Muito menos do que se resolveu quanto aos prejuízos (material e animal). Isso deixamos pros já de barba. Só sei que lá pelas onze horas de uma quente manhã de um distante janeiro, aquela foi uma das melhores farofas de fígado que experimentei!
Pobre garrote do Seu Guido.
por Anderson Nobre (nov/2023)