O Outro de Mim

Escrever… Um hobby ocasional.

Ao final do ano de 2019,  por impulso, comecei a ensaiar algumas escritas. Um texto aqui, outro ali e em meados de 2020 eram já numerosos e ousei em organizá-los em forma de dois pequenos livros.

Pergunto-me, volta e meia,  a razão de tal apetite em produzir esses textos. A maioria foi derivada de situações que vivenciei ao derramar da areia na ampulheta da vida. Outros, principalmente os ensaios poéticos, decorrem de mera interpretação de fotografias que capturei… Fotografar… outro hobby ocasional.

Talvez quis dar concretude ao inconcreto, que volta e meia vagueia pelo pensamento. E continua a vaguear…Volta, meia volta, volver… Pensamento vem e pensamento vai.

Mas, não sei se por conta do isolamento decorrente da maldita pandemia, já faz algum tempo que não escrevo.  Onde estais inspiração? Por que me abandonaste? Procuro resposta…

Dias desses, dando uma arrumadinha no meu site (https://andersonfnobre.com.br), busquei uma frase que ilustrasse a seção de publicações. Deparei-me então com uma frase do escritor e pensador português Vergílio Ferreira que diz “Escrever é ter a companhia do outro de nós que escreve.”.

Caramba! Não é que é mesmo! Ao escrever, penso que nos projetamos em um outro de nós. A este outro, passamos o “script” do que queremos que ele relate. Fruto das experiências, dos experimentos, do conhecimento, dos sentimentos,  das sensações, das visões e ilusões, dos sonhos e pesadelos, das fantasias, etc., etc., etc. E este outro escreve como se num evento psicográfico estivesse.

Sim, é um outro de nós, porque o verdadeiro de nós não diz tudo… Quase sempre se esforça para dizê-lo, acho. Mas oculta, disfarça, dissimula, manipula. Guarda pra si aquilo que mantém intransferível, secreto, interior, só seu.

Mas o faz, não com intenções escusas, maldosas ou por proposital egoísmo, ainda que, o papel escrito possa denotar tais propósitos. É uma atitude involuntária que o faz lançar mão do outro de si, para que este sim, assine o produto escrito.

E quanto mais a areia se acumula na parte inferior da ampulheta, mais conteúdo está presente nessa nossa relação com este outro de nós. Conteúdo esse capaz de encantá-lo, alegrá-lo, entristecê-lo, emocioná-lo, fazê-lo buscar reflexões, fantasias, aspirações… Enchê-lo de esperança ou de desalento. Até ensiná-lo. Um processo interativo que busca, de alguma forma, simular a reação do futuro leitor, alvo final dessa conjunta produção.

Fico imaginando quão libertador poderia ser conseguíssemos tomar deste outro esse mister da expressão por meio da escrita. Viajaríamos sem receio pelo mais íntimo e intrínseco de nós mesmos. Exploraríamos labirintos escuros, desvelando irreveláveis guardados da personalidade. Mergulharíamos por internas regiões abissais, antes de pressão insuportável e de escuridão cegante. Romperíamos os lacres onde contidas emoções se abrigavam em forte segurança. Seria o eu em autoimersão.

Então me embrenharei nesse matagal interior em movimento libertador!!! Agora sou eu comigo mesmo… Qual nada! Não é fácil, não é natural. Se fosse, qual seria então o sentido da frase do ilustre escritor? Ela é reveladora. É verdadeira. É protetora. É catalisadora. É propositiva. Decifra a via de mão única para a criação.

Então, tenho que chamá-lo novamente. Sim, aquele outro de nós. Este outro de mim. Venha, vamos escrever! Daquele nosso mesmo jeitinho leve, lúdico, sem maiores pretensões literárias, catando prosas aos ventos do pensar, embaralhando palavras num construir de um castelo de frases.

Vem de novo outro de mim! Pega a caneta ou melhor, o teclado e mete bronca companheiro. Eu te ajudo, mas já vou adiantando… Tem coisa que eu não posso contar, certo Seu Vergílio?

por Anderson Nobre

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