Além do Seminário

Catando lembranças…Lá vai mais um capítulo das minhas lembranças do tempo de infância e pré-adolescência. Procuro com isso, revelar os negativos guardados na cachola, instigando quem ler a fazer o mesmo. Busco boas recordações de um tempo bom, que marcou de forma indelével a minha trajetória de vida. Desculpem-me pela abordagem numa perspectiva exclusivamente individual e um tanto egoísta, certamente nostálgica, mas, se são revelações das minhas próprias memórias, não haveria de ser diferente.

Além do Seminário

Montes Claros, MG. Década de 70. Morávamos no novo bairro Jardim São Luiz, na rua Daniel Costa. Durante um bom período de tempo ao longo daquela já distante década a nossa rua se manteve sem calçamento. No máximo, pedras em cascalho para enganar a lama nos dias de chuva e despistar um pouco a poeira da estiagem.

Ali, próximo, já no bairro do Melo, no encontro das atuais ruas Domiciano Pimenta, Lírio Brant e Eugênio Nunes, funcionava, se é assim que se diz, o Seminário. A área do Seminário ocupava uns três quarteirões. Era enorme. Na parte da frente, na entrada, havia uma capela, ladeada por enormes bambuzais. Lá fiz catecismo e primeira comunhão. Lá sempre assistíamos missa aos domingos.

Até a altura da igreja do Seminário havia casas no bairro. Dali em diante, era um matagal só, entrecortado por estreitos caminhos de terra, desbravados pelo trânsito de pessoas, carroças e animais. Carro pouco ali passava. Havia naquela região algumas chácaras até o limite imposto pelo rio do Melo. Depois, uma antiga, já castigada e enegrecida ponte de madeira, dava acesso à entrada para uma fazenda.

Aos finais de semana, normalmente aos sábados, saíamos numa caminhada em turma, eu, meus irmãos e meu pai – minha mãe ia ocasionalmente. Seguíamos para além do Seminário, passando pelas últimas residências do bairro e pela serraria do seu Jonas. À direita de quem ia, o muro do Seminário. À esquerda, vegetação abundante. 

Do outro lado de um minúsculo ensaio de pracinha, situado em frente à entrada da igreja do Seminário, morava um pedreiro, o seu Emídio, que nos prestava serviços eventuais. Era um terreno grande, onde enormes mangueiras peitavam o poderoso sol dessas bandas de cá, garantindo uma agradável sombra sobre o terreiro. Parávamos ali ocasionalmente em busca das mangas, de qualidade comum, mas doces como mel.

De vez em quando, éramos escoltados pelo Vulcão, um misto de pastor alemão e policial, de propriedade dos vizinhos de frente na Daniel Costa. Nos dias de maior calor, o Vulcão não dispensava um banho no rio do Melo. Infelizmente, não podíamos segui-lo, pois o rio já apresentava os primeiros sinais de poluição pela descarga de esgoto e lixo.

Não raras vezes, cruzávamos com vaqueiros tangendo suas pequenas comitivas.  Não raras vezes, deparávamos com animais pastando tranquilamente, soltos à larga.

Incursão mata adentro, seguindo por uma já conhecida trilha, até alcançarmos uma chácara.

A chácara, imagino situada onde hoje está o edifício Medical Center, na avenida José Correa Machado, era habitada por um casal de idosos. Bom, talvez não fossem idosos, mas na minha percepção de criança assim os classificava. Acho, inclusive, que nos referíamos a senhora como “a velhinha”. Amáveis e cordiais, os “velhinhos” nos presenteavam com laranjas, mangas, cana. Em contrapartida, comprávamos um pouco de hortaliças, milho verde ou outros frutos de época. Passávamos boa parte da tarde ali.

Ao longo da jornada, sob a escolta de saudosas e frondosas árvores que margeavam boa parte do caminho, a curiosidade da criançada desafiava meus pais. – Que bicho é esse ai? – Que passarin é aquele ali? – Que árvore é essa? – Isso é pé de que? – Pode comer isso? – Mãe, cortei meu pé.

Missão de educar sendo cumprida. Ensinamentos direto do mundo real. Tocando, cheirando, experimentando, subindo, descendo, pisando…

Voltávamos para casa em fim de tarde, já ao despedir do sol. Cansados, mas felizes por desfrutar ainda que por poucas horas daquele pedacinho de paraíso situado logo ali, prá lá do Seminário. Com certeza mais “sabidos” pelos ensinamentos colhidos aos repetidos percursos das trilhas.

Hoje, onde existia o Seminário, funcionam várias faculdades, autoescola, quadras de futebol, comércios… A igreja foi deslocada para a rua lateral, sem os bambuzais. A casa do pedreiro, hoje hamburgueria. As mangueiras, sucumbiram ao ataque feroz das motosserras. Chácaras deram lugar a inúmeras residências, avenidas e edifícios. O rio do Melo, desfila seu filete de água por canais; poluído; morto! Coisas de cidade grande, que precisa atender às necessidades de seus milhares de donos. 

Eu, em puro banso, gostaria de voltar praquele tempo… Pra lá, logo ali… Para além do Seminário.

por Anderson Nobre

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