Resposta a Um Velho Amigo

Prezado amigo Tucunaré,

Caramba, fiquei muito feliz com a sua missiva. Quanto tempo em Tucuna? Acho que posso te chamar assim. Nosso passado permite essa intimidade.

Como posso me esquecer daqueles tempos? Daquelas pescarias maravilhosas. Daquela lagoa jorrando natureza? De você, dos seus amigos e vizinhos? Jamais!!

Lembrei-me de cada detalhe do que você narrou em sua carta. Que memória hein?

Permita-me discordar quando você menciona que a nossa “luta” era desigual. Na verdade vocês eram aos milhares…Só que, arteiros, zombavam de nós. Vinham quando queriam. Muitas vezes ficávamos horas, dia ou mesmo durante todo o período de pesca sem fisgar um vivente qualquer. Às vezes era tanta escassez, que revezávamos com os mesmos peixes para tirar as fotos. Ingredientes para as estórias de pescador…

Se não fossem o Yuri e o Santo, com as suas varinhas de bambu, para garantirem uns piaus e umas piranhinhas sairíamos de mãos e isopores vazios.

Vocês ficavam nos sacaneando, tocando nas iscas e tensionando as linhas. Nós, iludidos, dávamos aquele puxão forte na vara, na intenção da fisga. Nada. No fundo – com o perdão do trocadilho – eram vocês que se divertiam conosco.  

Lembro, também, de vocês furiosos quando aquelas metidas à piranha, na espreita, chegavam nas iscas antes de vocês. Traíras!!

Comentei com meus companheiros sobre o nosso contato. Todos se emocionaram saudosos de um tanto. Até a Dona Nita teve vontade de preparar aquelas deliciosas farofas de carne cozida. Verdade, não eram de peixe, claro!

Eu, o Sr. Vandach, Seu João, o Ramon, o Júnior, o Tusta e o finado Santo, todos nós, temos muita saudade daquelas nossas aventuras. É o amigo Santo partiu cedo…Virou estrela…Acho que se lhe foi permitido optar, escolheu a constelação de peixes como morada. Pescador dos bons!!

É como se diz: – o tempo passa… E cada um de nós seguiu seu rumo. Acho que daquela turma o Yuri é o que ainda continua dando umas pescadinhas.

Nesse nortão seco e quente, amigo, as águas estão raleando. Rios, riachos, córregos, lagoas, açudes…Tudo tá secando meu amigo. Até aquele majestoso vizinho lá da lagoa, o velho Chico, lembra? Hoje agoniza.

É, os seres da minha espécie parecem não ter noção do que estão fazendo. Tem alguns que ainda são céticos em relação a essas mudanças nas estações do tempo. Verdade é que tudo mudou. Pra pior, acho.

Acredita que conversando com a minha prima, hoje proprietária da fazenda onde você morava, ela me contou que a lagoa secou!!! Que criatura de Deus poderia imaginar que aquela imensidão de água um dia secaria. Parecia impossível. Mas aconteceu!

Tem chovido muito pouco por aqui nas últimas décadas. Várias propriedades foram instaladas ali por perto. Desviaram curso dos veios d’água que abasteciam nossa lagoa. Secaram, como veias cauterizadas. Hoje só poeira. Abriram poços artesianos, que parecem torcer aquela terra tão já carente, em busca dos últimos litros de água. Cortaram árvores, queimaram, construíram suas casas e estradas. É, o tal do progresso se instalou por aquelas bandas.

Creio que a natureza, em furiosa vingança, esteja sugando para as profundezas da terra toda a água desse sertão. Sabe lá Deus onde isso vai parar.

A lagoa. Nem consigo imaginá-la seca. Deve ser uma vastidão de terra dura, marcada
pelas rugas da aridez, coberta com rala vegetação. Talvez lagartos, cobras e insetos possam ter grilado aquele terreno.

Sem piaus, sem traíras, sem curimatãs, sem piabas, sem piranhas, sem vocês.

Acho que até os roucos guaribas foram embora. Os pássaros, hoje devem cantar melodias de lamento. Cadê a água que tava aqui…Cadê a água que tava aquiiiii…

Penso que agora as maritacas, em seu voo em formação, passam por lá em silencio, em respeito aos que ali viveram.

Meu barquinho não mais navega no doce remanso daquelas águas cristalinas. Não vejo mais os jardins submersos da sua casa. Não mais seremos atrapalhados pelo emaranhado de plantas aquáticas que se aninhavam como uma extensa teia, prendendo o nosso remo. Não ouço mas o coaxar de sapos e pererecas ao cair das noites. Nem o zumbido irritante dos redemoinhos de muruinhos.

Os fios da rede elétrica não mais ficaram enfeitados com peixinhos artificiais. Nunca mais perdi minutos preciosos de pescaria, a desenrolar cabeleiras de nylon que por vezes encobriam a carretilha.

Meus apetrechos de pesca envelhecem guardados na parte superior de um guarda-roupas na casa da Dona Geralda, minha mãe.

Não sei se eu teria coragem de passar uma noite acampado por lá, pois teria a certeza de ver estrelas cadentes, possivelmente lágrimas de luz escapando dos olhos tristes dos que ali viveram ou pescaram e já partiram para a eternidade. Uma tristeza de dar dó, que de certo seria solidariamente acompanhada por lágrimas d’água salgada, que rapidamente secariam ao cair naquele solo outrora molhado, agora tórrido.

É isso amigo, quem sabe o Universo nos reserve tempos melhores. Quem sabe as águas voltem a nos inundar de esperança e de alegria. Quem sabe ainda volto a pescar. Quem sabe…

Sempre encantando e com muita saudade do amigo Tucuna,

Anderson

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