Mudamos para a rua Daniel Costa ao final do ano de 1970. Éramos sete pessoas, eu, meus pais e meus quatro irmãos. Naquela época o bairro Jardim São Luiz era uma novidade. Loteamento recente. Expectativa de um futuro promissor para aquele novo bairro com vocação residencial.
Realizávamos, então, o sonho da casa própria. Uma casa, ainda inacabada, com paredes ainda em reboco, a maioria dos cômodos em contrapiso. Na frente, apenas o alicerce, sem o muro. Aos fundos um quintal e um pequeno quartinho. Aos nossos olhos infantis uma mansão, se comparada ao barracão alugado do qual acabávamos de sair.
A rua, bem deserta. Umas dez casas, no máximo, espalhadas ao seu longo. Lembro-me de alguns moradores…Tinha a casa da dona Hilda, a da dona Catarina, a do professor Pantoja, na esquina a casa do seu Pedro, com seus ônibus e jardineiras. Mais a frente, seguindo do início da rua, a casa do professor Tarcísio e a nossa casa. De frente a nossa, a casa do seu Geraldo e da dona Nen. Seguindo na próxima esquina, a casa de um engenheiro do DER, acho que Dr. Rodolfo, que depois de outros moradores de temporada, veio a ser a casa do Dr. Macedo e da dona Arlete. Rua abaixo – no sentido onde hoje daríamos na Praça dos Jatobás – a casa do seu Wilson Veloso e lá, bem lá no final, a casa de meu colega de Escola Normal, o Paulo. Essas são as primeiras das quais me recordo, numa rápida consulta à memória.
De resto, mato, muito mato. Escolas próximas, havia apenas o Deolinda Ribeiro e a Escola Normal e, posteriormente, o Polivalente. Pouquíssimos estabelecimentos comerciais. Na verdade, botecos travestidos de padaria e mercearia ou vice-versa (venda do Ildeu, venda do seu Mário…). Bem diferente, pois no nosso antigo endereço estávamos acostumados com muitos vizinhos, comércios e movimento.
Naquela ocasião o movimento em nossa nova rua era mínimo. Muitas vezes víamos mais cabeças de gado do que carros passeando pela rua. Muita poeira ou lama, dependendo da estação do ano.
Aquele mundo, que comecei a explorar aos oito anos de idade era maravilhoso. Mesmo com poucos meninos na vizinhança, logo formamos um timinho de futebol. Partidas na rua ou no antigo campinho onde hoje está a Praça Rotary. Havia também o campinho do seminário, atrás de onde hoje se situa o Polivalente, mas era um pouco distante.
A maioria das nossas brincadeiras ocorria mesmo na rua, à porta de casa. Pelada, “dentro ou fora”, queimada, porta-bandeira, soldado x ladrão, esconde-esconde, finca (nos dias de chuva)…Gostávamos de explorar os lotes vagos, onde, dependendo da época o capim atingia altura superior a nossa.
Flora diversificada: capim, mamona, carrapicho, uns pés de manga, pequenas árvores… Fauna abundante: pássaros, besouros, tanajuras, borboletas, cobras, aranhas, sapos, formigas… Recordo-me das nossas aventuras noturnas pela imensidão dos lotes vagos, acompanhados do meu pai e do nosso vizinho, o saudoso seu Geraldo, armados um pequeno pulverizador à caça das terríveis formigas cabeçudas (saúvas) que detonavam as roseiras das mães e avós.
Aquela era a minha rua! Uma Daniel Costa “selvagem” no sentir daqueles meninos que gostavam de brincar, no sol, na chuva, na poeira, na lama, no mato. Gostavam do lufar do vento refrescando o suor “preguento” e sujo daquelas tardes quentes, desgrenhando os cabelos ainda fartos. Sonhávamos…
Seguindo sua vocação residencial, o São Luiz foi crescendo. Com ele, a Daniel Costa se povoando. Nossa casa já concluída, entrava numa sequência de sucessivas reformas. Coisas da minha mãe…
Casas e mais casas. Veio o Exército com suas residências, as pracinhas, as padarias mais sofisticadas, os colégios, o asfalto… Foram-se os campinhos de terra, os matos, os bichos, um pouco do sol, do vento, as fogueiras juninas, os lotes vagos, as brincadeiras de rua. Nós? Crescendo juntos…
Entramos na época das chacrinhas na casa dos amigos, dos primeiros barzinhos. Mas lembro-me até o início dos anos 80 e mesmo com o asfalto, resistíamos e continuávamos com as peladas de rua… Balizas marcadas por pés de chinelos de borracha. Partidas constantemente interrompidas pelo trânsito mais intenso de pessoas e carros.
O bairro seguiu em expansão. Surgiram as feiosas cercas elétricas e concertinas, as enormes casas com dois andares. O comércio se intensificou. Mais vizinhos e, paradoxalmente, menos amigos e conhecidos. Tudo acompanhava o ritmo de crescimento da cidade. Movimento acelerado!
Hoje, passados quase cinquenta anos daquele distante 1970 é certo que a vocação do São Luiz não é mais a residencial. Muitos venderam suas casas que se transformaram em estabelecimentos comerciais. Os poucos, a maioria já idosos, que ainda lá residem e resistem, pensam em deixar o bairro em busca de sossego. Muitas escolas, lojas, bares, restaurantes, clinicas, farmácias, academias, supermercados. Aos sábados e aos domingos mal consigo estacionar na rua da casa onde ainda residem meus pais. O barulho dos inúmeros bares e do constante trânsito de carros e motos já incomoda bastante.
Há muito tempo essa já não é mais a minha rua!
Daniel Costa, eu cresci, mas tu crescestes por demais!!
No ainda que te visito, não ouço mais a gritaria da criançada nas disputas de porta-bandeira ou queimada. Não ouço mais a a algazarra das brigas nas disputas dos lances nas peladas. Não ouço o “aboiar” tímido do rapaz vaqueiro tangendo suas vaquinhas. Não vejo mais manchas do sangue dos dedões e dos joelhos dos meninos, arrebentados por um “caiau” de cascalho ou ralados no asfalto. Não sinto o calor confortável das fogueiras do São João. Já não te enchem de cápsulas de mamona das sobras das guerras imaginárias. A bola já mais não rola nos seus domínios. Não vejo sapos, nem aranhas, quase bicho algum. Só conservastes os pardais, as baratas, gatos e os ratos. Não frequento mais a casa do vizinho da frente para ver o capítulo da novela. Nem mais reconheço os vizinhos!
Ah!!! Que bom seria se essa rua, se essa rua, ainda fosse a minha, de novo.
Por Anderson Nobre
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