O outono no hemisfério sul iniciou-se em 20/03/2020. Veio diferente, pandêmico, restritivo. Pessoas confinadas, em casa, sofrendo com as más notícias de uma nova doença que se espalhou pelo mundo. Medo, mortes, comoção. Fraturas expostas na frágil condição humana.
Nesse turbilhão, pouco nos damos conta da beleza da estação que se inicia. Beleza essa sempre decantada em prosa e verso. Pelo lento cair das folhas, já esmaecidas pelo destino de renovar. Pelas matizes de cores e tons que tomam conta da aquarela do céu a cada entardecer. Pelo frescor da brisa soprando desejos de inverno. Pelas árvores, despidas, exibindo-se em um ramificar de galhos.
Dizem ser a estação da purificação, do desapego, da mudança temporária de identidade, da renúncia.
Mas todos, preocupados, só se lembram do vírus. Partícula microscópica, veloz contaminante, patogênico, apocalíptico. Maldito mutante. Corona.
Nos pegou, desacelerou, isolou, empobreceu. Trouxe-nos o sofrer. Fez-nos recolher em reflexões… Por que? Terá sido culpa do bicho homem? Que num veloz ganancioso, devasta, polui, destroi, desequilibra, manipula? Que num virulento egoísmo, oprime, discrimina, explora, segrega?
Hoje, já outono, meu pai completou 88 anos de vida. Coincidiu com a data de aniversário de 58 anos de casamento. Tradicionalmente seria aquela festa. Família reunida em nossa velha residência. Comemoração em dobro! Filhos, genro, noras, netos e netas, bisneta. Todos deveriam estar lá. Todos queriam estar lá.
Mas não, o Corona não deixou. Meu pai, hoje cadeirante após uma maratona de cirurgias nos últimos dois anos e já com notórios lapsos da cansada memória, esperou, mas já sem muita expectativa. Chegamos eu, minha irmã. Estavam lá o cuidador e a minha mãe. Em tempos de pandemia, festa de aniversário com ares de baile de máscaras.
Um bolo de aniversário, um café reforçado, uma única e improvisada velinha em formato estrela, representando o número 8, comum às duas datas comemorativas. A festa teve início com uma chamada virtual. Pela pequena tela de um tablet surgiram os convidados. O Sr. Vandach, parecia meio fora de sintonia, sem entender muito aquele surgir digital de rostos, balburdiando: – Parabéns pai!, – Parabéns vô!, – Parabéns seu Vandach… – Parabéns pai e mãe, – Parabéns vô e vó… Bendita tecnologia!
E foi assim, nessa telefesta, com contatos, abraços e beijos trafegando em bytes, que entoamos o “Parabéns pra vocês…”. Nessa data tão querida, faltou também a presença dos tios, primos, sobrinhos, de gente que sempre costuma aparecer nesse dia.
Meu pai, pareceu não ligar tanto para essas ausências. Pareceu-me já um pouco distante, talvez num mundo que tenha reservado para seus outonos. Doravante… Purificado, desapegado. Em outra identidade. Renunciando. Deletérias, doídas, indeléveis marcas do tempo.
Ouço ele cantar, canções de tempos idos, como uma cigarra que, apenas se contentando com a existência do sol, se confunde nas estações. E, por pura nostalgia, canta, canta forte, constante. Busca passadas primaveras interiores em tempos externos de conturbado outono.
Naquele bolo de aniversário, aquela pequena vela estrela ardia em brilho solitário. Como se clamasse por um sopro de esperança, que se apaga agora para reacender em vindouras estações. Sem vírus. Com gente, muita gente. Contatos, abraços e beijos reais, físicos. Família!
Parabéns meu pai. Parabéns minha mãe.
Por Anderson Nobre – 21/03/2020